quinta-feira, 13 de setembro de 2012

História meio Torta

Fico surpresa quando faço as contas e percebo que estamos juntos a quase 20 anos, e assim tento não me manter saudosa, mas não consigo. Escuto seu sorriso na casa, seu lindo sorriso ao me ver, e me pergunto para onde isso foi, para onde nós fomos...




Hoje está um sábado lindo lá fora, e estou sozinha em casa contando as gotas na parede, amando tristemente meu cachorro no tapete da sala e ouvindo qualquer coisa na televisão. Está tudo certo. Penso essa frase com muita força e tento inutilmente convencer-me disso. Fui avisada que não há formulas, que as coisas esfriam e se empobrecem, mas o fato é que eu nunca quis acreditar nessas revistas Cláudias que acham que todo relacionamento está fadado ao fracasso, a não ser que a gente seja uma super-heroína. - Eu não sou. Resmunguei baixinho picotando um pedaço qualquer de papel. Levantei o rosto num ato-reflexo, com medo de que alguém pudesse ter ouvido meu pensamento, mas lembrei que estava sozinha. Sozinha não, havia o Fred deitado no tapete da sala, que também me amava tristemente.
Enquanto escutava um barulho perturbante da geladeira, tive a ousadia de perguntar a mim mesma por onde será que ele andava quando sumia de casa? Quero dizer, não que eu achasse isso ruim, se existisse algum lugar cujo eu pudesse sair para fugir daqui, eu também fugiria. Mas de qualquer forma, quando ele está aqui a casa também é vazia. Ele tornou-se só um vulto quente que dá-me bom dia, e vez ou outra um beijo na testa. Vez ou outra. Talvez esteja sendo um pouco otimista.
Não posso mentir, passamos bons momentos. Vimos juntos quase todos os filmes da década de 90, lemos alguns livros assim também. Lembro do nosso primeiro encontro oficial, Jorge contava as moedas para comprar dois cachorros quentes, e quando enfim comprou, eu lhe disse que perdera a vontade, pois o nome me remetia a um cachorro, uma coisa viva que agora estava ensalsichada no meu pão. Ele deve ter me achado uma idiota mimada, mas não falou nada. Comeu os dois cachorros lentamente, fitando o horizonte e talvez indagando porque raios teria me chamado para sair. Mas, desde de então estamos juntos e não ficamos separados nenhum dia se quer. Estudávamos em faculdades diferentes e em períodos diferentes mas dávamos nosso jeito. E que jeito. Quantas aulas minhas jorge assistia entediantemente só pra ficarmos mais tempo juntos,e quantas corridas individuais eu fiz pra pegar o ônibus e chegar antes de bater o sinal.
Depois de tantas memórias, até questiono-me se sinto mesmo raiva de Jorge. Mas ele torná-se indiferente a tudo, e principalmente a mim. Jorge deixou de acreditar na gente, e agora que me permiti pensar, acho que deixou de acreditar faz tempo. Nunca mais conversamos sobre ter filhos, e a essa altura não adianta muita conversa pra pouco óvulo e nenhuma disposição. Depois da nossa última tentativa frustrada, sinto que Jorge afastou-se de mim, numa espécia de tempo-para-curar, mas ele nunca mais voltou. Tento não pensar muito nisso. E não quero entrar na neutra dos 40, sem filho, sem carinho e desesperada. Digo, não quero entrar de novo.
Algo nessa mistura de saudade e rancor começou a corroer-me, porque na verdade o Jorge tornou-se um ingrato. Dediquei tudo a ele. Briga com a família, empréstimo, essa casa, esse cão, tudo eu e minhas lutas. Todos esses anos fazendo a melhor comida, tentando inovar no domingo e vendo videos no youtube para emagrecer. Cortei o cabelo e ele não reparou. Eu reparo até como ele dobra os punhos da camiseta; calor demais de 4 a 6 dobras, quando não 1 ou 2. Eu perdi minha vida dedicando-me a Jorge. E ele soube disso, e ainda sabe. Fez com que eu me empobrecesse aos poucos com suas ausências, falhas, relaxos. Para que eu enfim pudesse me tornar um pedaço de carne fria estirada no sofá.
Nunca fiz segredo que apesar de toda essa pose autônoma, eu queria mesmo é ser cuidada, ganhar atenção e colo no mínimo o tempo inteiro e foi isso o que ele me oferecera por alguns anos. Até saber que eu estava definitivamente entregue, até garantir que minhas barreiras estavam porosas e inofensivas. Nunca mais me deu reciprocidade quando soube que estava nua de alma, quando soube que eu não o deixaria por nada. A não ser pela solidão.
Levantei e vim para cozinha fazer um chá de limão e gengibre, desses que minha mãe fazia quando eu estava doente. Penso que talvez eu esteja doente, inventando um monte de histórias na minha cabeça que só me trazem tristeza. Fred veio comigo, e parece me olhar como se soubesse de tudo isso, como se concordasse comigo, e piedosamente me lançava um olhar de consolo. Talvez eu esteja exagerando, mas é que já são seis horas e nada do Jorge aparecer aqui. Pois então está decidido. Quando ele aparecer, tratarei de ter uma boa conversa com ele. Espero apenas que ele não esteja cansado demais, e que não suba para dormir antes mesmo de eu conseguir suspirar.
O chá está pronto. Ao pegar o bule, percebo que minhas mãos estão ficando enrrugadas, nunca havia reparado nisso. Algumas pintinhas sim, mas as rugas não. Ponho o chá na mesa e proponho comigo mesma uma auto-análise sob meu corpo, aquilo que tenho evitado a nem sei mais quanto tempo. Tudo bem. Continuo magra, mas minhas pernas estão moles moles, e o que era pra ser músculo agora é preenchido por buracos. Bom, mas não importo, Jorge sempre achou meu corpo lindo. Ou será que ele achava meu corpo lindo? Será que essa flacidez o desinteressou tanto? Mas ele nunca foi de ficar interessando-se pelo físico, sempre priorizou a mente, o interior. Lembro que disse que apaixonou-se por mim porque eu era "divertida e inteligente", viu em mim alguém que parecia acreditar realmente no que defendia, e que achou-me linda quando discuti com um babaca numa palestra de psicologia.
Então eu não sou mais fiéis aos meu ideais? tornei-me monótoma? Estou tremendo, e pensando coisas as quais eu jamais me permiti. Então, será que ele encontrou alguém? Isso explicaria tudo, alguém mais jovem, mais vivo, ainda crente nos ideias e achando que vai mudar algo na porcaria do mundo. Jorge seria capaz de fazer isso, ainda é bonito, não tem essa pele cheia de pintas e essas rugas como eu. Além do mais é professor de uma universidade, quantas aluninhas não ficam esfregando-se nele por admiração?
 Certo dia uma delas veio aqui. Clarice. Linda, com um sorriso enorme, cabelos negros e lisos e uma energia que cansou-me. Queria a opinião de Jorge sobre uma pesquisa, qualquer coisa assim. Ficaram horas conversando no escritório dele, enquanto eu lia qualquer coisa sobre comportamento infantil. Quando Clarice finalmente foi embora, Jorge desceu as escadas e foi rumo a cozinha. Chamou-me para conversar e estava animado, falando alto sobre a pesquisa da moça enquanto eu de cara levemente azeda fingia algum tipo de interesse, até que ele beijou-me de repente. Assustei-me. Logo o beijo foi tomando forma, daquele que não dávamos a tempos, e fizemos amor ali mesmo no chão da cozinha. Lembro de ter pensado "Que chão frio, e que saudade desse corpo quente". Ficamos ali por algum tempo, trocamos uma ou outra palavras engraçadas até que Jorge decidiu levantar-se para tomar um banho, e acabou dormindo pelado na cama.
Agora eu estou aqui, pisando no mesmo chão frio, dessa vez sem ninguém para aquecer. Acho que estou entrando em crise, e não é uma dessas que estampam capas de revistas. É a minha crise. Nunca entrei tão a fundo na minha memória, nunca me permiti questionar minha relação. Estou triste, e espero que Jorge não me veja assim quando chegar, se chegar. Pego minha caneca e lentamente deito ao lado de Fred, que já está quase dormindo. Talvez esteja cansado dessa eterna melancolia de sábado.
Olhando para esse piso e essa parede é fácil explicar porque esse ar triste propaga-se tão rápido. Tudo nessa casa é cinza, escuro, falta luz. Tentei convence-lo disso, propus uma pintura em toda a casa com cores de verdade. Mas logo ele inventou uma desculpa, talvez por preguiça, e logo esqueci do meu plano. Pensando bem, tudo que eu propus a Jorge ele conseguiu dar um jeito de articular-se para que me fizesse esquecer...Involuntariamente fui tomada por uma vontade enorme de chorar, meus olhos estão cheios de água, tentei engolir o choro como muitas vezes fiz. Não consigo, e sou tomada por um enxurrada de água salgada.
Agora, um pouco mais leve, seca e tranquila, decido fazer algo para comer. Afinal, quando ele chegar em casa estará com fome. Pensei em fazer uma torta salgada, mas isso faz-me lembrar restos. Decidi então fazer uma torta de amora, que era fácil e lembrava algo alegre. Quando enfim termino de esmagar as coitadas das frutas, ouço um barulho na porta, Jorge finalmente chegou. Está animado hoje, me cumprimenta com um beijo meio apertado na testa e senta na sala. Aviso docemente que tenho uma surpresa pra ele, e depois de alguns minutos o chamo para a cozinha. Jorge fica feliz e deu-me um beijo na bochecha dizendo que estava mesmo com vontade de amora. Alimento o Fred que nos olhava enciumado e pego um pedaço para Jorge. Dá a primeira garfada e automaticamente diz que está ótima, mas ao poucos me lança um olhar confuso e balbucia algo inteligível. Jorge não conseguiu terminar a última garfada, caiu morto no chão frio da cozinha, junto a Fred.

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